CLAUDIA CRUZ
(psicóloga CRP-12/09368 - especista em Diagnóstico de Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pelo LACRI - USP )
Não é novidade que manter a dieta isenta de glúten e sem contaminação cruzada por glúten é o único tratamento para a doença celíaca (DC) e sensibilidade ao glúten não celíaca (SGNC), entretanto pouco se discute sobre os aspectos psicológicos e sociofamiliares relacionados a este processo. É comum lermos nos grupos de autoajuda, criados por celíacos em redes sociais, relatos de transgressões a dieta mesmo diante das consequências e da gravidade dos sintomas. Mas afinal por que esse tipo de situação acontece?
Para abordarmos especificamente a dieta sem glúten precisamos contextualizar que o comportamento alimentar tem duas principais funções. Na primeira temos a variável fisiológica, onde o alimento é ingerido como forma de manter a quantidade de nutrientes necessários a sobrevivência. Na segunda o alimento é uma forma de obter prazer, aceitação e pertencimento a um determinado grupo, seja ele social ou familiar. Nestes dois cenários cada indivíduo está sujeito, tanto geneticamente quanto psicologicamente, a escolher determinados tipos de alimentos.
Estudos vêm sendo realizados com objetivo de identificar as variáveis relacionadas à adesão e manutenção da dieta livre de glúten, como forma de contribuir para a criação de estratégias que estimulem e apoiem celíacos e suas famílias. Cabe destacar que a adesão a qualquer dieta restritiva pressupõem um envolvimento ativo da pessoa que a realizará, bem como das pessoas com as quais convive, incluindo os profissionais de saúde, amigos e familiares.
Em recente pesquisa (Sainsbury et al. 2018) foram avaliados 5573 celíacos através de questionário, com objetivo de compreender os recursos psicológicos utilizados na manutenção da dieta livre de glúten. Entre os celíacos 81% relataram “nunca” sentirem desejo de quebrar a dieta, enquanto menos de 2% apontaram que sempre sentem-se tentados a consumirem produtos com glúten.
Quanto ao consumo intencional de glúten, 94% disseram que nunca o fizeram, enquanto 1,5% informaram que sempre consomem voluntariamente produtos que quebram a dieta. Destaca-se que no caso de consumo voluntário de glúten, os participantes sentiam-se fisicamente doentes, não percebiam nenhum efeito positivo na dieta e/ou estavam passando por circunstâncias que os deixavam mais propensos ao consumo.
Conforme os mesmos autores, os celíacos com melhores resultados de adesão a dieta possuíam maior capacidade de autorregulação (autonomia de escolha), autoeficácia (confiança na capacidade de realizar a dieta) e suporte social e familiar.
Destaca-se também que para Sainsbury et al. (2018) a presença de transtornos mentais (moderados ou severos), incluindo a ansiedade, depressão, entre outros, e que muitas vezes são consequências da doença celíaca, podem ser fatores impeditivos da adesão à dieta.
Num outro estudo (Sainsbury & Marques .2017), foi analisado especificamente a relação entre a presença de sintomas depressivos e adesão à dieta sem glúten, demonstrando existir uma correlação positiva entre a depressão e a diminuição da adesão a alimentação sem glúten. Tal correlação demonstra a importância de incluir o acompanhamento psicológico, além dos acompanhamentos médico e nutricional, como forma de melhorar os resultados da dieta.
Conforme Dowd et al. (2015), utilizar estratégias que diminuam os sintomas psicológicos (ansiedade, estresse, mudanças de humor), além da melhoria de acesso aos alimentos sem glúten e do conhecimento sobre a dieta e seus benefícios, podem aumentar a capacidade autorreguladora e a adesão e manutenção da dieta livre de glúten.
Diante disso, além de ensinar habilidades de autorregulação, torna-se importante também que celíacos e seus familiares conheçam e compreendam os aspectos relacionados à gravidade da doença. Neste sentido os autores relatam que os indivíduos diagnosticados devem ser ensinados sobre a dieta (aumento do conhecimento), bem como precisam receber ajuda para planejar as novas refeições, seja através de um planejamento semanal (acompanhamento nutricional), ou através do compartilhamento de receitas, livros e materiais específicos sobre a dieta.
De acordo com Rocha, Gandolfi & Santos (2016), a família emerge como uma importante rede de cuidado para os celíacos, considerando principalmente o caráter crônico da doença e a necessidade de dieta sem glúten e contaminação cruzada. Perceber o apoio da família auxilia positivamente na manutenção diária da dieta, por outro lado muitos celíacos demonstram sentimento de culpa, pois a doença pode gerar alterações nas condições sociais da família, ocasionando inclusive situações conflituosas, não apenas pela restrição individual, mas também pelos cuidados necessários para a eliminação da contaminação cruzada.
Diante das muitas variáveis que podem interferir na adesão e manutenção da dieta sem glúten, é possível destacar que os aspectos psicológicos individuais, assim como os familiares e sociais são de extrema relevância para a efetividade da dieta. Perceber o apoio da família e dos amigos repercute de maneira significativa na adaptação a nova dieta, principalmente diante do fato de que não alteram-se apenas os hábitos alimentares dos celíacos, mas também seus hábitos sociais, de maneira a garantir a redução da contaminação cruzada e a redução dos sintomas.
Por fim, todas as questões aqui apresentadas demonstram que para a efetividade da dieta, enquanto forma de tratamento da doença celíaca e de melhorar a qualidade de vida, deve-se ampliar a visão sobre a doença para além do controle sorológico, histológico ou nutricional, incluindo também os aspectos psicossociais envolvidos.
Referências
Dowd
A.J., Jung M.E., Chen M.Y. & Beauchamp M.R. (2015) Prediction of
adherence to a gluten-free diet using protection motivation theory
among adults with coeliac disease.
Journal
of Human Nutrition and Dietetics Disponível
em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1111/jhn.12321
Rocha
S, Gandolfi L, Santos JE. The psychosocial impacts caused by
diagnosis and treatment of Coeliac Disease. Rev
Esc Enferm
USP. 2016;50(1):65-70. DISPONÍVEL EM:
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n1/pt_0080-6234-reeusp-50-01-0066.pdf
Sainsbury
k. et al. Maintenance of a gluten free diet in coeliac disease: The
roles of self-regulation, habit, psychological resources, motivation,
support, and goal priority. (2018) Appetite
125,
p. 356e366. Disponível em:
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0195666317317865?via%3Dihub
Sainsbury
k. & Marques M. The relationship between gluten free diet
adherence and depressive symptoms in adults with coeliac disease: A
systematic review with meta-analysis. (2017) Appetite.
Disponível em:
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0195666317310231
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