quinta-feira, 24 de março de 2022

Precisamos falar sobre HIPERVIGILÂNCIA e Doença Celíaca

 


Por Raquel Benati (@rio_sem_gluten)

A palavra HIPERVIGILÂNCIA vem sendo cada vez mais usada quando se fala em tratamento da Doença Celíaca.
Nas primeiras vezes em que ela foi usada por Celíacos e Cuidadores em grupos virtuais tinha como sinônimo o cuidado rigoroso em relação aos riscos de contaminação cruzada por glúten em alimentos, utensílios e ambientesque precisamos ter na dieta sem glúten.
Com o passar do tempo veio a compreensão do termo hipervigilância no contexto da Psicologia/ Saúde Mental e sua relação com transtornos emocionais.
O objetivo desse texto é entendermos melhor o que é a Hipervigilância e sua manifestação no contexto da Doença Celíaca.
Acompanhe e entenda!






HIPERVIGILÂNCIA & SAÚDE MENTAL

A hipervigilância é mais do que apenas ser muito vigilante. É um estado de alerta extremo que prejudica a qualidade de vida.
Se a pessoa é hipervigilante, estará sempre à procura de perigos ocultos, tanto reais quanto imaginários.
Por causa disso a hipervigilância pode provocar exaustão física e mental e interferir nos relacionamentos, trabalho, estudos e na capacidade de funcionar no dia a dia dessa pessoa.
A hipervigilância é uma forma do corpo se proteger de supostas situações perigosas. Portanto, ela se manifesta em ambientes onde a pessoa nota uma ameaça extrema.
Pessoas hipervigilantes estão sempre à procura de ameaças externas, evitando situações cotidianas onde perigos possam estar ocultos. Elas podem ter inclusive reações fisiológicas frente a essas ameaças, induzidos por hormônios associados com a reação de lutar ou fugir.
A hipervigilância causa sofrimento intenso e provoca prejuízos significativos em diferentes áreas da vida.
O tratamento para a hipervigilância pode variar de acordo com a causa e severidade do comportamento.
Também depende de a pessoa afetada reconhecer o comportamento como anormal ou não.
O tratamento envolve psicoterapia, treinamento de atenção plena (meditação e relaxamento) e técnicas de enfrentamento além do uso de medicamentos, quando necessário.
As opções incluem a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). A meta da TCC é ensinar ao paciente, através de conversas com o terapeuta, que ele não pode controlar todos os aspectos do mundo ao seu redor, mas que pode controlar a forma como interpreta e reage ao ambiente.
Se você está sofrendo com a hipervigilância, procure a ajuda de um profissional da saúde mental.
Mais importante, se comunique. Sofrer em silêncio e se recusar a falar sobre o que está sentindo apenas reforçará seus medos e te afastará dos outros. Encontre um amigo ou familiar de confiança, de preferência alguém que não minimize seus medos.



ENTENDENDO A NECESSIDADE DA VIGILÂNCIA NA DOENÇA CELÍACA


VIGILÂNCIA: estado de quem vigia, de quem age com atenção e precaução para evitar riscos e perigos /Ação de quem age com cautela e prudência.
Na Doença Celíaca o único tratamento existente é uma dieta isenta de glúten: significa a eliminação total de fontes de glúten (conjunto de proteínas do trigo, cevada e centeio) da dieta, por toda a vida. É uma condição permanente, exigindo controle ininterrupto.
Isso requer uma série de cuidados que cada celíaco (ou quem cuida dele) precisa ter para garantir a restauração e manutenção da sua saúde diariamente.
Nesses cuidados, além de não haver consumo de fontes de glúten é preciso evitar a contaminação cruzada por glúten, que é a transferência de traços ou vestígios de glúten entre alimentos, superfícies e utensílios culinários nas mais diversas situações cotidianas dentro ou fora de casa.
Esses traços de glúten são suficientes para adoecer os celíacos e manter essa doença autoimune ativa, com inflamação do duodeno e toda a cascata de problemas decorrentes desse processo.
A doença celíaca quando não tratada adequadamente, pode levar a pessoa a um quadro de adoecimento grave e até à morte.
É nesse contexto do cuidado constante com a própria saúde que vamos ver a necessidade da VIGILÂNCIA na Doença Celíaca, pois o glúten é onipresente no mundo de hoje.
Para ficar mais fácil de entender temos como exemplo o serviço da “Vigilância Sanitária- VISA, ligado às Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde:
“Vigilância sanitária é o conjunto de ações para ELIMINAR, DIMINUIR OU PREVENIR riscos à Saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da Saúde.
Os agentes da VISA ao fazerem fiscalização em fábricas, supermercados, frigoríficos, restaurantes, verificam uma série de pontos para saberem se há segurança para o consumo desses alimentos.
Na doença celíaca é assim também: há uma série de pontos que precisam ser checados e ações que precisam ser adotadas diariamente para garantir que o glúten e os seus traços não sejam ingeridos pelos Celíacos.



VIGILÂNCIA CELÍACA


VIGILÂNCIA CELÍACA: criando procedimentos para autogestão da segurança de alimentos na dieta sem glúten / Preenchendo lacunas onde a Ciência ainda não tem respostas claras.
Parece título de artigo científico, mas é preciso explicar um pouco mais sobre o contexto da VIGILÂNCIA no controle da Doença Celíaca.
A dieta sem glúten surgiu como tratamento da doença celíaca na metade do século XX. De lá pra cá houve um aumento no número de pesquisadores interessados em entender melhor tudo que envolve essa doença autoimune e seu tratamento.
Uma dessas pesquisas, publicada em 2007, teve o objetivo de estabelecer um limiar seguro de ingestão de vestígios de glúten para celíacos.
A pesquisa revelou grande variação entre os pacientes na sensibilidade aos traços de glúten.
Nela se mostrou que 50mg de glúten/dia, ingeridos por 3 meses, foram suficientes para causar uma diminuição significativa da relação vilosidade/cripta na mucosa duodenal em pacientes tratados com Doença Celíaca.
Esse estudo influenciou o CODEX ALIMENTARIUS a adotar o limite máximo de 20ppm de glúten em alimentos rotulados como sem glúten em 2008.
Também nessa época vimos aumentar as recomendações de cuidados com vestígios de glúten para pacientes celíacos nos consultórios dos gastroenterologistas e nutricionistas.
Mas muitas dúvidas referentes às mais diversas situações do cotidiano da comunidade celíaca continuaram sem respostas, por falta de um volume maior de pesquisas específicas.
E foi justamente nessa lacuna de orientações oficiais que muitas “regras” da #vidasemglúten nasceram: partindo da experiência dos próprios celíacos ou seus cuidadores, compartilhadas nos grupos de apoio e/ou com a ajuda de ferramentas da Internet.
Esse fenômeno é descrito nas pesquisas em Saúde:
"EXPERIÊNCIA DA DOENÇA" e é entendido como a forma pela qual os indivíduos posicionam-se perante a situação da enfermidade, conferindo-lhe significados e desenvolvendo modos rotineiros de lidar com essa condição.
As respostas aos problemas criados pela doença constituem-se socialmente e remetem diretamente a um MUNDO COMPARTILHADO DE PRÁTICAS, CRENÇAS E VALORES.


VIGILÂNCIA - BASE DA SAÚDE CELÍACA


O diagnóstico de doença celíaca provoca um rompimento do fluxo cotidiano na vida da pessoa e seus familiares, fazendo com que seja necessário a reorganização das atividades diárias.
Embora o tratamento seja aparentemente simples (tirar os derivados de trigo, aveia, cevada e centeio da dieta) na prática é algo bem complexo, pois a presença de glúten e de seus vestígios em nossa sociedade é tão grande quanto é o desconhecimento sobre a doença celíaca.
A pessoa Celíaca precisa cuidar e garantir que seu alimento seja isento de glúten e vigiar para que assim permaneça até que seja ingerido.
Isso envolve estar vigilante dentro e fora de casa em todas as refeições, todos os dias, para sempre, pois a condição celíaca é por toda a vida.
Uma VIGILÂNCIA rigorosa e constante é a base da Saúde Celíaca. É ela que vai possibilitar colocar essa doença autoimune em remissão e permitir a restauração do organismo.

Os pontos-chave dessa VIGILÂNCIA são:
  • Planejamento
  • Organização
  • Prevenção / Precaução
  • Análise de risco
São passos baseados naquilo que a Ciência pôde comprovar e do aprendizado coletivo e sua evolução ao longo dos anos dentro das comunidades celíacas (experiência da doença).
Mas precisamos nos atentar com a passagem do tempo: o que era uma dúvida em 2001 ou em 2011, talvez já não seja mais um problema em 2021.
A questão é que a Internet guarda tudo para sempre e sem critérios e muitas vezes celíacos recém diagnosticados se deparam com informações antigas sem saber que já “perderam a validade”.
Exemplo: Na década de 2.000 veio informação de grupos da Argentina de que havia glúten em pastas de dente. Algum tempo depois pudemos conferir que no Brasil não havia esse problema e nossas pastas eram isentas de glúten (durante esse tempo todo apenas 1 pasta de dente infantil – Ben 10 – trouxe o aviso de presença de glúten).
Porém, até hoje, ainda vemos essa dúvida surgir nos grupos sobre a segurança das pastas de dentes em decorrência dessa situação.






Chegamos no ponto principal desse texto: a

HIPERVIGILÂNCIA no contexto da DOENÇA CELÍACA

Aqui precisamos olhar para a forma como a pessoa celíaca REAGE e se COMPORTA frente às diversas situações do cotidiano onde ela se depara com o RISCO da contaminação por glúten ou seus traços.
O foco não é se a orientação está certa ou errada – o foco é na PESSOA e seu comportamento DISFUNCIONAL:
Se a pessoa celíaca está em sofrimento intenso e com prejuízos significativos em diferentes áreas da vida, com uma chance aumentada de depressão e de isolamento social, a linha tênue que separa a VIGILÂNCIA da HIPERVIGILÂNCIA foi rompida!
Esse comportamento disfuncional pode inclusive estar associado ao desenvolvimento de problemas físicos, se tornando “gatilho” para crises de enxaqueca e apresentação de sintomas gastrointestinais, dermatológicos e outros.
O sinal de alerta deve ser acionado assim que se percebe um aumento da ansiedade frente às situações do cotidiano e uma incapacidade de encontrar alternativas viáveis para a convivência em sociedade.
Nesse momento buscar ajuda psicoterápica é muito importante.
Há estudos apontando que a gestão eficiente da dieta sem glúten depende do desenvolvimento de ferramentas emocionais e de uma rede de apoio, mesmo que virtual:
  • Autorregulação - processo que gerencia as emoções para inibir impulsos e construir respostas adequadas para as diversas situações que geram estresse, ansiedade ou exigem tomadas de decisão.
  • Autoeficácia - a crença que o indivíduo tem sobre sua capacidade de realizar com sucesso determinada atividade.
  • Autocompaixão - maneira de enxergar com gentileza, preocupação, apoio e de forma amável a si próprio frente a algumas dificuldades ou erros cometidos.

A Saúde Celíaca depende dessa VIGILÂNCIA constante e da capacidade emocional de lidar responder aos desafios cotidianos.
Para aprendermos a lidar com a VIGILÂNCIA precisamos de tempo, boas orientações e um cuidado grande com nossa Saúde Mental.
Se estamos no papel de ser REDE DE APOIO e/ou de quem dá ORIENTAÇÕES sobre a precisamos nos preocupar em como o OUTRO entende e aplica o que ouve.
Saúde Mental também importa!



HIPERVIGILÂNCIA x Equívocos nas Orientações sobre VIGILÂNCIA CELÍACA


Como já falamos anteriormente muitas orientações para gerenciamento da #vidasemglúten vieram diretamente das Comunidades de Celíacos, com base em suas experiências ao lidarem com os desafios do cotidiano.
As orientações são feitas visando contemplar o maior número de celíacos possível, seja pela diversidade que existe tanto em variedade de sensibilidade aos vestígios de glúten quanto variedade e duração de sintomas.
E aqui vem a questão: antes do problema ser realmente de HIPERVIGILÂNCIA, talvez seja uma situação onde as orientações foram mal compreendidas ou estão equivocadas.
A diferença entre o remédio e o veneno é a dose!
1 – O celíaco decora a regra mas não entende seu fundamento e não sabe quando aplicar nas diversas situações do cotidiano.
A falta de conhecimento básico sobre como a doença celíaca é ativada e o que acontece no organismo, ou como ocorre a contaminação cruzada por glúten, dificulta a reflexão e ponderação para aplicação da regra.

 

2 – A regra não está baseada no que Ciência pode provar e por isso precisa ser vista com ponderação, pois talvez só tenha sentido ao ser aplicada por aqueles celíacos que têm outras condições de saúde associadas e precisam de mais cautela.
A aplicação generalizada da regra fora de um contexto específico acaba levando a comportamentos extremados.

 

3 – A regra foi orientada por uma pessoa que sofre com hipervigilância e não tem condições de fazer uma leitura equilibrada da realidade à sua volta.

 

4 – A regra é antiga e já deixou de fazer sentido, mas a informação continua disponível na internet como se fosse algo atual.

Sabemos que há diferenças dentro da comunidade celíaca sobre algumas orientações e isso traz grande insegurança para os recém-diagnosticados.
Também vemos diferenças de orientações em outros países entre as Comunidades e Associações de Celíacos e Comunidade Científica.
Esse cenário tem tendência a perdurar ainda por um tempo pelo número modesto de pesquisas feitas atualmente para responder às dúvidas dos Celíacos e também pelo fato “da Ciência não conseguir documentar a individualidade” (@scientia.europa).


Fontes:
  • CARLO CATASSI, ALESSIO FASANO ET AL. A prospective, double-blind, placebo-controlled trial to establish a safe gluten threshold for patients with celiac disease, The American Journal of Clinical Nutrition, Volume 85, Issue 1, January 2007, pp 160–166
  • ALVES, P. C. & RABELO, M. C., 1999. Significação e metáforas na experiência da enfermidade. In: Experiência de Doença e Narrativa, pp. 171-185, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

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